Definição de património industrial: "Paisagem, sítio, edifício / bens móveis - instalações, máquinas, utensílios que testemunhem a actividade das sociedades economicamente desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento, compreendendo as fontes de energia e as matérias-primas, os lugares de trabalho, os meios de transporte e utensílios técnicos, o conjunto dos produtos que resultaram da actividade industrial, o conjunto dos documentos escritos, gráficos, fotográficos, os textos administrativos, jurídicos, técnicos e outros." (Fonte: Kits Património: Património industrial, definição elaborada pelo TICCIH (The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage - Comité Internacional para a Conservação do Património Industrial), em 1978; consultar também a Carta de Nizhny sobre o património industrial, de 2003).
O interesse de um património arquitectónico não reside somente na sua estrutura construída, mas também no conhecimento da razão da sua existência. No caso específico do património industrial, as técnicas e as memórias do trabalho são essenciais para a percepção dessa vertente da vida dos homens.
Embora muitas vezes acautelada a protecção dos edifícios, por via da classificação, e da sua envolvente próxima (no caso deste tipo de património, uma integrante fundamental da sua dinâmica formal e funcional), há que lamentar, na maioria dos casos, perdas irreparáveis do seu recheio técnico e de toda a sua documentação empresarial (Ver texto «Arquivos empresariais: património documental e fonte histórica»).
Tomando como exemplo a fábrica de moagem do Caramujo, estando este imóvel já em vias de classificação em 1993, data do seu encerramento, é inaceitável que nada tivesse sido feito no sentido da salvaguarda de tão valioso espólio, representando este arquivo um testemunho importante da história, da memória e da cultura de uma empresa situada num lugar destacado na história económica e social do nosso país. Não representando este tipo de património um marco valioso no panorama cultural nacional não é de estranhar o completo desinteresse por esse valioso acervo documental e técnico, testemunho cultural, histórico ou científico.
Quanto à sua documentação somente restarão os documentos remetidos a organismos oficiais durante a sua existência como entidade industrial, ou pontualmente detidos por particulares que deles se apossaram, tendo percebido o seu conteúdo de mais-valia; quanto a outros testemunhos materiais de relativa pequena dimensão felizmente alguns também ainda existem em colecções particulares e sendo objecto de valorização por parte dos seus donos.
(Disponibilizada por Francisco Melo Parente, através do Facebook, no grupo «Almada Património Material e Imaterial») |
(Disponibilizada por Carlos Caria, através do Facebook, no grupo «Almada Património Material e Imaterial») |
O património móvel de maiores dimensões, a sua maquinaria, sofreu igual destino - após venda, só conheço oito máquinas que ainda funcionam numa empresa do sector moageiro no concelho de Sesimbra, restando unicamente as memórias fotográficas em alguns periódicos da época e a possibilidade de visualização num outro local.
Anúncio da firma Bühler (Fonte: Boletim FNIM, Ano VIII, Nº30, Abril de 1965 (moinhos de cilindros) |
Dois dos moinhos de cilindros existentes até 1993 na fábrica de moagem do Caramujo, Agosto 2010 |
Num empenho de salvar as memórias de vidas inteiras dedicadas a um trabalho intenso e como tentativa de percepção mais completa da vida laboral desta zona do concelho almadense e recolha e salvaguarda das memórias dos intervenientes, lembrei-me de que a melhor solução seria recorrer a entrevistas aos trabalhadores da fábrica de moagem, um recurso fornecedor de uma pluralidade de dados informativos quanto à descrição dos seus espaços de trabalho, às suas funções específicas dentro da trama hierárquica fabril da moagem, respeitando sempre a sua identidade com os tempos passados.
"O técnico de moagem por vezes também denominado «moleiro» estava no topo da hierarquia e era o responsável máximo pela produção e cujo desempenho ditava o lucro da moagem. [...] A substituição gradual da máquina a vapor por alguns grandes motores eléctricos decorreu durante os anos 50.[...]Em 1963 fez-se a última grande remodelação da moagem com material 'moderno' e foi desmantelada a máquina a vapor (que se encontrava desactivada), por necessidade de espaço. Foi pena, porque actualmente seria muito interessante apreciar o volante enorme, as bielas manivelas em aço brilhante, os tirantes das válvulas, os corpos dos cilindros pintados a vermelho escuro, os bronzes luzidios mancais, etc. [...] Recordo-me ainda das dificuldades que representava por vezes conjugar o funcionamento da máquina com a maquinaria de produção da moagem. [...] Não é difícil de imaginar o conjunto de manobras e a perícia dos operadores para cortarem o acesso do vapor que estava a ser produzido no máximo da potência das caldeiras, pois se não cortassem de imediato o combustível e abrissem as válvulas de escape a pressão de vapor provocaria certamente uma explosão. E depois para repor a máquina em movimento e alcançar a velocidade normal, era preciso restabelecer a pressão do vapor, controlar adequadamente o fluxo de combustível e a quantidade de água. E a moagem não podia funcionar abaixo da sua velocidade nominal pois entre outros inconvenientes a qualidade da farinha sairia prejudicada. [...] Os trabalhos de manutenção da máquina também eram morosos e por isso eram adiados para as paragens aos domingos [...] e era preciso manipular e reparar peças ainda quentes. Havia trabalhos terríveis [...] Por estas razões havia um desejo generalizado de passar à energia eléctrica..."
(Plenos de pormenores estes excertos das "memórias" de Álvaro Guimarães, o último director fabril, que ao longo dos anos desempenhou várias funções na fábrica de moagem, nomeadamente técnico de moagem).
Os poucos registos que sobreviveram à voracidade da falência e recessão industrial da Cova da Piedade, revestem-se de uma enorme importância para a reprodução deste sistema sócio-técnico. Embora revisitado a partir de citações testemunhais, de fotografias de outros tempos, alguns documentos pessoais, restos de exemplares da produção de outras eras e de recolha documental fotocopiada a partir de originais guardados em arquivos institucionais, o quotidiano laboral poderá ser relativamente recuperado.
A finalidade desta recuperação seria evidentemente, na minha óptica, a construção de um discurso narrativo, provavelmente de carácter expositivo, um recurso de transmissão da memória histórica e social do Caramujo, e da industrialização da Cova da Piedade, através do complemento articulado de um património de domínio material e imaterial.
Conceição Toscano
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