quinta-feira, 28 de junho de 2012

O património cultural e o desenvolvimento sustentável

A Europa Nostra, organização de defesa e salvaguarda patrimonial, assume-se como a voz do património cultural na Europa, tendo construído, ao longo de 45 anos, uma rede de ligações com mais de 400 membros e organizações associadas de toda a Europa. Estas instituições assumem um papel fulcral, atendendo à vivência num mundo globalizado em que é vital o património cultural para um convívio de entendimento e respeito entre os cidadãos europeus, uma vez que nos aproxima apesar da existência de diversos antecedentes culturais e étnicos e pode ultrapassar fronteiras nacionais e de língua, como pode ser lido na apresentação da sua página acessível em http://www.europanostra.org/who-we-are/.

De 30 de Maio a 12 de Junho, Portugal foi o centro do património europeu, tendo sido Lisboa o local da realização do Congresso Anual desta organização, que este ano teve como tema «Salvaguardar o património ameaçado da Europa». Este ano, a Europa Nostra distinguiu com o Prémio União Europeia para o Património Cultural a recuperação dos orgãos do Mosteiro de Mafra.

O JL aproveitou a ocasião para entrevistar a secretária-geral da Europa Nostra, Sneska Quaedvlieg-Mihailovic, tentando perceber quais os sentimentos e objectivos que motivam a missão desta organização e a norteiam nos seus projectos, dentro de uma área de actuação "demasiado importante para as sociedades, para a economia e para a qualidade de vida", nas palavras da entrevistada, que afirma convicta que é a razão de existir da organização a defesa do património, actuando junto dos poderes políticos, com a plena consciência de que "em todos os campos há lobbies, grupos de pressão, organizações não-governamentais" e querem ter a certeza de que em todas as decisões foi pensada a responsabilidade desta herança.
Para Sneska Q-M, a Europa Nostra pretende "promover boas práticas ao nível da proteção do património e das paisagens culturais da Europa.  [...] também queremos fazer soar o alarme e chamar a atenção para o património que está ameaçado". Inquirida acerca dos argumentos de que a Europa Nostra se serve para conquistar a adesão de novos adeptos, a resposta surge emotiva: "Não nos cansamos de dizer que o Património é um recurso gigantesco - são inúmeros os monumentos, museus, sítios arqueológicos, paisagens - mas também muito frágil. Uma vez perdido não pode ser recuperado (só recriado, embora não seja a mesma coisa). Além disso, faz parte da nossa identidade, define-nos. Não podemos conhecer o futuro, mas podemos descobrir o passado através dele. Ou seja, os fundamentos de todo o processo de construção europeia partem do princípio de que partilhamos uma enorme cultura, diversa e plural. É responsabilidade nossa passá-la a outras gerações. A Europa não pode ser construída apenas sob os pilares da Economia."
Para a entrevistada, o inimigo desta visão será "talvez a tendência para se pensar no curto prazo e no lucro fácil. [...] Se retirarmos lições do passado, esta crise pode ser uma oportunidade para o Património Cultural."
Uma oportunidade para "pensar a longo prazo, porque todos sabemos que nada acontece da noite para o dia, sobretudo nesta área." Atendendo às dificuldades de vária ordem sentidas nos dias de hoje, "é normal, com a crise, as pessoas entrarem em pânico e desvalorizarem as políticas de salvaguarda e proteção cultural. Por isso temos de estar ainda mais presentes e melhor organizados."
E como pode o comum cidadão ajudar? "Ninguém pode dizer que cuidar do Património é uma tarefa alheia ou exclusiva do Estado. Nunca foi, nem nunca será. É uma responsabilidade combinada entre público e privado. São as próprias comunidades que têm de o valorizar. E a mais-valia de uma organização como a nossa é conseguir congregar pessoas que partilham de uma mesma noção de defesa do Património. Aqui encontrarão energia e inspiração para fazer coisas diferentes e maravilhosas."
Respondendo à pergunta do jornalista acerca da capacidade de o património gerar emprego e incutir novas dinâmicas nas cidades, a secretária da Europa Nostra responde que há estudos diversos que confirmam esta avaliação. "Uma cidade que protege o seu Património, valorizando os centros históricos, torna-se mais apelativa e aumenta a sua qualidade de vida. E depois uma coisa puxa a outra. Se há um ambiente especial, as empresas querem estar por perto e as pessoas também. O Património é assunto social mas também económico. Isso pode ser decisivo para as pequenas e médias cidades. Os decisores locais têm, por isso, uma grande margem de manobra. É uma grande missão: perceber que cada cidade é única."

Fonte: JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias nº1087, pp.8-9

Esta entrevista assume importância tendo em conta alguns dos assuntos focados para além da missão de apelo à defesa e salvaguarda do património cultural, e de uma união das comunidades que pode extravasar as fronteiras nacionais para o território europeu - a urgente actuação de todos nós na revitalização do tecido com valor histórico e patrimonial das nossas cidades, vilas e aldeias, procurando não somente preservar uma herança, mas potenciando caminhos alternativos de desenvolvimento sustentável social e economicamente, visando uma desejável e merecida melhoria de qualidade de vida.
Conceição Toscano

domingo, 24 de junho de 2012

A inovação tecnológica na história local da industrialização

Na região do estuário do Tejo, nomeadamente na sua margem sul, devido a boas condições, de ordem vária, desde o factor natural, mas também de cariz geográfico e económico, potenciados pela proximidade da capital, desde cedo as populações foram instalando moinhos de maré. Os moinhos de vento igualmente marcaram a paisagem, embora a influência destes últimos tenha sido menor na vida económica do concelho.
O estuário do Tejo desde cedo constituiu um importante centro moageiro, onde estas estruturas robustas se destacavam em terrenos que pertenciam ao concelho e termo de Almada. Inclusive o mais conhecido dos moinhos de maré a nível nacional, o de Corroios, pertenceu ao concelho almadense até 1836.(1)
Os moinhos de maré destacam-se nesta conjuntura da produção moageira da margem sul do Tejo, devido à quantidade de farinha moída e à facilidade de escoamento através de transporte fluvial. Ainda hoje se podem observar algumas destas estruturas nos concelhos que têm margens estuarinas - Seixal, Barreiro e Montijo.
Local testemunho da evolução da manufactura para a produção através do uso da máquina, todo o estuário do Tejo, não sendo terra de produção de cereais, reunia, no entanto, as condições geográficas para receber, do Ribatejo e do Alentejo, o trigo através do transporte fluvial.
Esta paleo-indústria de moagem iria progressivamente dar lugar às fábricas, com maquinaria importada, desaparecendo gradualmente as antigas estruturas. Os cereais e as farinhas suportavam mal os transportes, sendo conveniente instalar as unidades industriais o mais perto possível dos centros urbanos e das vias de acesso (estando Lisboa e a sua Outra Banda localizadas numa potencial zona estratégica para esta implantação), faltando ao promitente interessado no negócio gastar o mínimo possível com a força motriz.

Na sequência de uma já longa tradição local da moagem de cereais, Manuel José Gomes, um proprietário de vários moinhos e cujos antepassados directos também tinham estado ligados ao moinho de maré de Corroios, assume uma postura arrojada de iniciativa pessoal e estabelece novas técnicas de trabalho.
Em 1865, este industrial inaugura os edifícios da fábrica e a doca de desembarque de trigo e embarque da farinha no lugar do Caramujo. Pela sua mão, o espaço da Cova da Piedade revelava, já na segunda metade do século XIX, uma dinâmica de vigor na crescente industrialização.
O desenvolvimento técnico, potenciado pela máquina a vapor, alterava a conjuntura de factores determinantes para a fixação das fábricas. No caso específico do lugar do Caramujo as condições naturais já existiam (nomeadamente proximidade das vias de circulação e de grandes centros urbanos) e um conjunto de infra-estruturas necessárias a este novo mundo laboral iriam começar a surgir: o cais, armazéns, estruturas edificadas para albergar as mós e o maquinismo motriz.

A fábrica de moagem do Caramujo, data não indicada, datada certamente entre 1889 e 1897 (Fonte: Alexandre M. Flores, da sua obra Almada antiga e moderna - Roteiro iconográfico - Vol. III: Freguesia da Cova da Piedade, p.73)
Nesta foto exemplificativa da primeira fase de existência do complexo moageiro, conseguimos perceber o esquema construtivo que transformou, ao longo de três décadas, a unidade fabril inicial num complexo: de sul para norte (da esquerda para a direita) vemos os edifícios geminados, correspondendo à fábrica construída em 1865; separado destes por um vão, alargamento posterior de 1872; por último, o edifício principal construído por volta de 1888-89, inaugurado em 1889. Esta Moagem (nome atribuído às fábricas de farinha), em 1881 estava equipada com 18 pares de mós, sendo considerada a maior fábrica nacional deste sector de actividade industrial.
A partir do momento em que as fábricas substituem as mós de pedra por sistemas novos de moagem, os cilindros de metal, esta indústria abandona o carácter artesanal e entra numa nova era. Os cilindros metálicos constituem a base do denominado «sistema austro-húngaro». São cilindros de fundição endurecida, trabalhados, e que podem ser estriados ou lisos, de dureza variável, conforme o fim a que se destinam. A capacidade da moagem é muito maior  e são aproveitados os subprodutos da farinha espoada. Esta inovação foi o ponto de início da verdadeira moagem moderna. Começava o início do fim da vida útil dos moinhos.
A instalação e crescimento exponencial da indústria moageira na Cova da Piedade - Caramujo, foram dois dos factores impulsionadores do desenvolvimento económico da zona. Como prova da importância desta fábrica já em 1889 podemos apontar a inclusão da tecnologia inovadora atrás referida, o sistema austro-húngaro, na moagem dos cereais. Neste ano, era inaugurado o edifício novo; para além da modernização da fábrica em termos de edificado também há notícias em relação à maquinaria. (2)
Anúncio da fábrica de moagem do Caramujo, publicado no Almanach Comercial, em 1889 (Fonte: Alexandre M. Flores, da sua obra Almada antiga e moderna - Roteiro iconográfico - Vol. III: Freguesia da Cova da Piedade, p.73)
O desenvolvimento industrial introduzido por Manuel José Gomes continuava a marcar pela referência positiva, agora pelas mãos da sua viúva e filhos, nomeadamente António José Gomes. Como parte fundamental das actividades laborais desenvolvidas em Almada, o lugar do Caramujo apresentava um dinamismo admirável dentro de um quadro económico regional e nacional, nomeadamente tendo em conta a situação apresentada referente à fábrica de moagem da Viúva de Manoel José Gomes & Filhos - para além de empregar 330 operários de todos os ofícios necessários ao fluxo da produção da farinha, laborava durante todos os meses do ano (nem todas as unidades fabris o faziam), tinha um capital considerável, já utilizava a energia eléctrica para iluminação, para além de ter alterado o seu sistema de moagem das mós tradicionais para o inovador sistema tecnológico.

Foi com espanto que colhi as seguintes informações no texto «A formação da classe operária portuguesa e o caso de estudo almadense (1890-1930)», da autoria de Joana Dias Pereira: "A tecnologia era rudimentar. [...] e as mós da Fábrica do Caramujo...»(3)
Todos os elementos que acabei aqui de expor traduzem claramente uma situação completamente contrária à opinião desta investigadora. Os estudos de história local devem trazer o conhecimento dos acontecimentos históricos, sociais e económicos às populações. Quaisquer análises devem ser sempre suportadas por fontes históricas e não devem ser emitidos discursos destituídos de avaliação aprofundada desses documentos e das obras já realizadas acerca da temática, nunca esquecendo que, numa investigação desta natureza, há que conhecer igualmente quer a história económica, quer a história social, nunca perdendo de vista a evolução das técnicas. Sem a prática deste trabalho multidisciplinar, não haverá nunca a percepção abrangente de uma evolução industrial, temática complexa e nunca tão linear que se pegue num só item e se descartem os outros.
Daí a riqueza de estudo que se apresenta ao investigador do património industrial. Daí a riqueza história da Cova da Piedade. Estudar esta temática de uma forma relativa é empobrecedor da nossa história local e redunda em erros de avaliação.

(1) Após a vitória do liberalismo, as reformas administrativas do século XIX, nomeadamente em 1836 (com a publicação do primeiro Código Administrativo, implementando medidas descentralizadoras), trariam alterações administrativas ao território de Almada, que se veria apartado de metade da sua área que passou para o novo concelho do Seixal.

(2) "...em 1890, quando Calvet de Magalhães inquiriu as fábricas de moagem, já empregavam cilindros as fábricas do Caramujo,...", apontado por Jaime Alberto do Couto Ferreira, na sua obra Farinhas, moinhos e moagens, p.211

(3) Publicado nos «Anais de Almada» Revista Cultural, Nºs 13-14; p.145

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Cova da Piedade: o associativismo como património cultural

Particularmente importante e fundamental assume-se a actividade de uma associação em concreto: a SFUAP - Sociedade Filarmónica União Artística Piedense. À volta do primeiro objectivo cultural da sua formação, criação de uma banda de música, criaram-se laços de sociabilidade entre operários, corticeiros, metalúrgicos, moageiros, e, mais tarde, da indústria naval, já residentes na zona e também vindos de fora, mas igualmente com demais pessoas de Almada, das mais variadas classes e profissões, desde comerciantes e intelectuais, sentimento saudável em torno de algo que não conhece nem barreiras sociais, nem geográficas - o amor à música; mais tarde, ao teatro, ao desporto e à educação. E igualmente a vontade de contribuir para o desenvolvimento cultural e social dos seus membros, através de actividades recreativas e artísticas, o que fomentou a união entre gentes tão diversas.
A SFUAP é umas das associações representativas do espírito associativo do concelho de Almada. Cultural e socialmente está indelevelmente ligada à evolução da Cova da Piedade, nomeadamente estando a sua sede instalada num dos mais emblemáticos edifícios do património piedense: o palacete de António José Gomes, o industrial, com o seu nome ligado ao apoio à colectividade e a algumas das suas mais prestigiosas e ambiciosas obras na área da cultura, desporto e educação.

Trabalhando no presente, pensando no futuro, nos finais do século XX, houve que levar em conta os novos modos de ocupação dos tempos livres, consequência do progresso tecnológico e evoluções da cultura de massas, tentando evitar a redução da atracção das associações de carácter recreativo e cultural, fomentando um renascer do espírito associativo, criando novas condições de acolhimento por parte das colectividades, melhor adaptadas e ajustadas às novas vivências.
Neste redimensionamento das matrizes identitárias nas sociedades dos nossos dias, com maior urgência há que retornar aos esquemas associativos de outrora, numa procura de reequilíbrio entre o novo e o velho, numa tentativa de alcançar uma justa mediação entre as identidades sociais tradicionais e a cedência a outras momentâneas ou não. A construção harmónica dos indivíduos continua a ser o objectivo e, nessa intenção, é fundamental a existência de vínculos e compromissos duradouros, contrariando a tendencial atomização da vida colectiva.

A história desta associação, o seu percurso de mais de cento e vinte anos, desde 1889, corporiza o diálogo entre um passado e um presente, contribuindo para a contínua consolidação de laços colectivos em torno de sociabilidades e tradições e um interesse sempre actuante no património cultural não somente a nível local.
 
Vista parcial do Largo 5 de Outubro, destacando-se o palacete da família Gomes e a Banda da SFUAP, 1989 (Fonte: Alexandre M. Flores, da sua obra António José Gomes: o homem e o industrial, p.118)




Palacete nos dias de hoje, fachada lateral

Conceição Toscano

domingo, 17 de junho de 2012

O associativismo na Cova da Piedade

Cova da Piedade, jardim público, anos quarenta do século XX (Fonte: http://metoscano.blogspot.pt/2009/04/preto-e-branco-nos-idos-de-quarenta-sec.html)
"O associativismo representa uma das mais fortes tradições populares de Almada. Uma herança cultural a testemunhar, hoje, que a união faz a força e que , ontem, na solidariedade, na recreação, no convívio [...] se ganhou a consciência colectiva de cada almadense. Uma das raízes culturais mais ricas para alimentar um projecto de sociedade em que «cada um entrega o melhor de si para colher o melhor da comunidade»."
Carlos Abreu e Francisco Branco - O associativismo. Tradição e arte do povo de Almada

A Cova da Piedade seria uma das localidades onde se sentiria com maior pertinência um quadro de evolução profunda, a nível ambiental e industrial, com consequências de ordem desiquilibrante em termos sociais e culturais, motivado pelo crescente desenvolvimento industrial e a colateral afluência de correntes migratórias, oriundas de diferentes pontos do país, particularmente do Alentejo, Algarve e também do Ribatejo e Beiras, para além das vastas terras rurais envolventes.

Quem chegava, vindo de um mundo rural e artesanal, via-se engolido numa dimensão diferente, com valores representativos que os afastavam de quem já cá pertencia. Sós, vivendo em precárias condições, sem traços identificativos à terra que os acolhia e aos seus vizinhos, como construíram algo que os unisse numa vivência conjunta nesse local que começou por ser somente o do posto de trabalho e em lar e em "terra" se tornou? Como criar laços de partilha e de vizinhança com quem também chegou e igualmente com quem já cá vivia? Em que bocadinho do tempo, que poderia eventualmente restar após as longas jornadas de trabalho, se poderiam ter construído redes de convívio ou rememoração das raízes deixadas para trás ou terem evoluído costumes, usos e hábitos tão diversos e diferentes dos existentes localmente para outros onde os traços de identificação foram nascendo e se solidificando?

Sendo tantos iguais nas condições de trabalho, e também nos gostos que permaneciam em cada qual, as necessidades de sobrevivência e de procura de estabilidade identitária e social entre quem chegava e quem aqui vivia, foram supridas em grande parte devido ao movimento associativo, nomeadamente através da pertença a associações de carácter lúdico, ligadas à cultura e ao desporto, mas também de outras com carácter social e de ajuda mútua. Um dos caminhos possíveis para a construção de laços de sociabilidade entre gentes de origens tão diversas, foi a constituição de associações com objectivos comuns. Em torno desta congregação de esforços se foram instituindo novas memórias que ainda hoje perduram como fundamentais na constituição de uma identificação colectiva da comunidade.

Podemos encontrar na base de funcionamento destas organizações o gérmen das ideias democráticas e a união numa corrente de pensamento, que radicava nos desejos de uma vida com melhores condições sociais, culturais, morais, por vezes desempenhando um papel político preponderante, em diversas ocasiões. Entre os seus membros existiam as mais variadas classes e profissões, com um apoio forte de figuras de renome e até de elite, intelectual e patronal, de que é exemplo o impulso e protecção por parte do industrial António José Gomes.

"Dispondo aproximadamente de vinte e cinco colectividades que exercem a sua actividade desportiva, cultural e recreativa em diferentes vertentes do entretenimento e da fruição dos tempos livres, mobilizando mais de 50 mil pessoas, a Cova da Piedade, é ainda, uma localidade onde desde sempre as agremiações populares sempre assumiram um papel destacado na vida da comunidade e na promoção do bem estar dos seus habitantes." (Página da Junta de Freguesia da Cova da Piedade)

Conceição Toscano

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Cova da Piedade: contextualização patrimonial de uma comunidade

O brasão da Cova da Piedade apresenta os elementos que simbolizam os testemunhos mais representativos das actividades económicas que marcaram a evolução desta localidade: a indústria moageira, a tonoaria, a reparação naval e a actividade marítima. Estas representações heráldicas não são meros apontamentos gráficos, mas identificam o carácter predominante da industrialização na identidade colectiva e reflectem uma parte importante do seu tecido socioprofissional e económico. Exemplos concretos de que, para os piedenses, a sua indústria e o operariado a ela ligado, detêm, na sua história e memória colectiva, um estatuto de merecido destaque e de valorização.

Como elementos importantes de um património representativo do seu percurso histórico encontramos a fonte medieval do Pombal, fontanário datado do século XIV, a capela de Sto. Antão, na Ramalha, lugar de culto religioso desde o século XV, a igreja de Nª Sª da Piedade, reconstruída e ampliada após o terramoto de 1755.
Mais recentes, encontramos marcas urbanas do património ligado à época do desenvolvimento industrial: o coreto existente no Largo do jardim público, construído em homenagem à vitória liberal de 1833; o palácio Gomes, morada de família, casa senhorial construída segundo o estilo neoclássico, apresentando uma fachada simétrica, com varandas de ferro forjado no primeiro andar, e as estátuas que rematam superiormente a platibanda, com motivos alusivos à actividade industrial; o chalet Gomes, de estilo profundamente influenciado pela construção além fronteiras, nomeadamente suiça;  a nora de ferro da quinta dos Gomes.
Coreto

Palacete, fachada principal
Podemos acompanhar a evolução histórica da Cova da Piedade, num percurso patrimonial que espelha as alterações económicas e define o sistema de referências locais, desde a ligação do piedense às actividades agrícolas e de carácter artesanal e de proto-industrialização até à recente indústria, com a paisagem referenciada pelos marcos urbanos da época mais recente de evolução tecnológica: o conjunto da fábrica de moagem do Caramujo e dos silos de armazenagem e o imponente pórtico da Lisnave. Emoldurando a zona estuarina, demarcam territorialmente a zona de futuras intervenções de revitalização urbana, assegurando que o desenvolvimento sustentável de uma comunidade não pode virar costas ao seu passado, mas deve sempre alimentar-se das suas vivências de ontem como seiva enriquecedora das raízes que possibilitam o crescimento e fortalecimento de uma identidade colectiva.
Centro histórico da Cova da Piedade, jardim público - à direita, o palacete; ao fundo, ao centro, a fábrica de moagem do Caramujo numa perspectiva de visualização dos silos; no jardim são visíveis o coreto e o restaurante (estrutura arquitectónica completamente desenquadrada da envolvente patrimonial)

Conceição Toscano

domingo, 10 de junho de 2012

Almaraz: património arqueológico urbano em Almada

Almaraz, vista aérea (Fonte: página da Câmara Municipal de Almada)
Em 1997, no 3º Encontro de Arqueologia Urbana, realizado em Almada, Manuel Paulo Ramos Neto, na época Presidente da Câmara Municipal de Mértola, referia a importância que a arqueologia urbana desempenha quanto ao conhecimento do tecido histórico de vilas e cidades.
Os problemas maiores nesta área poderiam assim ser referidos: os decorrentes de uma ausência a nível educacional e cívico na área do património cultural; a falta de enquadramento legal, originando indisciplinas nas intervenções no subsolo da áreas urbanas já objecto de estudos de delimitação e a falta acentuada de meios humanos com formação profissional adequada.
Na opinião de Fernando Real, também presente no Encontro, o Estado tem participado na salvaguarda do património de uma forma bastante variável, mas, com a publicação da Lei nº13/85, o subsolo das vilas e cidades é valorizado em termos históricos e patrimoniais.
Com a aprovação  da nova lei que regulamenta a política patrimonial portuguesa, Lei nº107/2001, são introduzidas alterações importantes, para além da intensão de um maior rigor e racionalidade ao nível das intervenções e classificações; o Estado, as autarquias e a sociedade civil têm um âmbito alargado de intervenção na salvaguarda do património.
Esta lei define como tarefa primordial do Estado, e dever de todos, proteger e valorizar o património cultural, com a finalidade de contribuir para a melhoria das condições de vida dos cidadãos, social e economicamente, promovendo o desenvolvimento, a nível local e regional. A política de património cultural visa alcançar o "conhecimento, a protecção, a valorização e o crescimento dos bens materiais e imateriais de interesse cultural relevante, bem como dos restantes contextos" (Lei nº107/2001).

E qual poderá e deverá ser o impacto nas cidades e nos seus habitantes, destas intenções escritas?

Nos dias de hoje, o poder local instituído em Almada tem projectos agendados e em prática para a Quinta do Almaraz, considerado "um local único do ponto de vista paisagístico e com um elevado valor patrimonial": uma equipa multidisciplinar desenvolve um trabalho de elaboração de um plano de pormenor nesta zona histórica de Almada, como resultado do estudo de enquadramento estratégico. Os planos da autarquia são mais abrangentes: "A reabilitação desta área de Cacilhas faz parte de uma estratégia mais ampla da autarquia que consiste na requalificação da frente ribeirinha da cidade, promovendo as suas potencialidades turísticas, aumentando o número de ligações entre o rio e a "parte alta" da cidade e a salvaguarda das entidades histórica e social das freguesias abrangidas" (Fonte: página da CMA).

Na minha opinião, Almada e Cacilhas terão neste local, privilegiado em termos de património natural e paisagístico, perspectiva a ter igualmente como referência, um espaço vocacionado para a investigação arqueológica, inserida no local da própria vivência histórica.
A implementação de um plano desta natureza poderá ser uma excelente oportunidade para concretizar um projecto inovador que poderia articular o novo com o antigo, o urbanismo e a paisagem, a preservação e conservação dos testemunhos patrimoniais, mas continuando a impulsionar o desenvolvimento. Almaraz pode ser, a partir de trabalhos convenientemente direccionados, não apenas um propósito realizado de salvaguarda e estudo científico de um património arqueológico urbano, mas também um bom investimento que pode dar óptimos frutos na criação de riqueza , cultural, social e económica a nível local e regional; uma complementaridade plena e multidimensional ao nível da vida comunitária.

Fundamental será sempre dinamizar o envolvimento das populações na vida e na trama histórica do seu legado patrimonial, como factor de coesão na construção de uma memória colectiva.

Conceição Toscano

sábado, 9 de junho de 2012

Uma perspectiva patrimonial do Almaraz

Vista panorâmica do enquadramento geográfico da Quinta do Almaraz, 2008
A Quinta do Almaraz está situada perto do castelo de Almada, entre as freguesias de Cacilhas e de Almada, numa encosta litoral sobranceira ao rio Tejo. Inserida num esporão sobranceiro ao rio, a uma altitude média de 50 metros acima do nível do mar, toda a bacia vestibular do rio Tejo se desdobra à vista, num enquadramento da Serra da Arrábida a Sul e a Norte a Serra de Sintra, balizando o estuário do rio Tejo até à sua foz.
A sua posição geográfica e estratégica, em termos de acessibilidade (rio, oceano, interior), mas  igualmente de defesa, porto e fonte de recursos alimentares, proporcionou condições excelentes para a ocupação humana, desde o neolítico à época romana. A Idade do Ferro foi seguramente a ocupação mais importante de todas as que se sucederam naquele espaço.

As provas materiais já estudadas apontam para a origem da própria cidade de Almada ter tido lugar em Cacilhas, ainda hoje uma das suas portas de entrada. A importância derivaria das condições que Cacilhas ofereceria como local de chegada e partida para a efectivação das trocas comerciais, funcionando como um prolongamento do povoado de Almaraz, situado arriba, e o litoral fluvial.

Em 1986, Luís Barros (arqueólogo) identificou a estação arqueológica da Quinta do Almaraz. Nessa década e na seguinte desenvolvem-se trabalhos de prospecção e escavação que visavam sustentar uma ideia da importância deste arqueosítio.
Perspectiva das escavações - Quinta do Almaraz
Consultada a página da Câmara Municipal de Almada, esta zona é apontada como detendo elevado valor patrimonial (acautelado, posto que a autarquia adquiriu os terrenos), sendo "uma das mais importantes estações arqueológicas fenícias do País"; devido à sua existência "chegavam ao Tejo comerciantes e produtos da bacia do Mediterrâneo, sobretudo cerâmica, tecidos, armas e produtos exóticos. Esta troca comercial terá certamente acelerado a produção na região de diversos produtos, entre os quais, sal, peixe seco e salgado, azeite, vinho, cereais, para além de metais, como o ouro, o cobre, o estanho e o chumbo."
As questões relacionadas com o padrão de povoamento desde sempre se colocaram. Os arqueólogos que têm estudado este povoado continuam a debater-se com mais algumas questões: seria uma feitoria? Ou um porto comercial, como os que existiam no Oriente? Ou uma colónia, como questiona Luísa Batalha? Certa é a aceitação de se tratar de uma ocupação com carácter permanente.
A ocupação posterior do local, a nível agrícola e também como pedreira, poderá ter destruído indícios importantes do que há séculos ali teria existido.

Somente a continuação de trabalhos no local e os estudos possibilitados por essas intervenções no terreno, assim como em colaboração, preferencialmente a nível mais alargado, nacional e peninsular, e transdisciplinar, poderá responder a todas as interrogações ainda existentes acerca da estação arqueológica do Almaraz.

(Alguns dos investigadores que têm estudado o povoado do Almaraz: Armando Sabrosa, Fernando Henriques, João Luís Cardoso, Luís Barros, Luísa Batalha; consultar igualmente  a bibliografia de Ana Margarida Arruda.)

Conceição Toscano

terça-feira, 5 de junho de 2012

Arquivos empresariais: património documental e fonte histórica

Não obstante a intenção de salvaguarda dos arquivos empresariais, desde há mais de três décadas em Portugal, nomeadamente a partir de promulgação de legislação específica, "considerando a importância decisiva de que poderão revestir-se certos arquivos de empresas privadas, e em particular das de maior antiguidade, relevância económica ou influência política, para o correcto conhecimento histórico da época contemporânea" (Decreto-Lei nº429/77)*, quem se dedica ao estudo do património da área industrial depara-se com a ausência de documentos privados pertencentes às fábricas que tenham cessado a sua actividade e caído no vórtice da falência.

Perdidos, extraviados ou destruídos os suportes de informação da vida empresarial, detidos a título próprio, outras vias têm de ser seguidas na procura de conhecimento, nomeadamente a visita às instituições que têm à sua guarda os documentos necessários à existência em condições legais da actividade económica: os processos de licenciamento acolhidos nos arquivos detêm elementos de inexcedível interesse para o registo da história económica.

Essas fontes documentais, com valor de prova legal e igualmente possuidoras de valor intrínseco, devido à antiguidade e também ao seu carácter único, revelam-se como possuindo uma valência de documento legal, de fonte histórica e de bem cultural. Esse património documental merece ver acautelada a sua salvaguarda. E igualmente ser revelada a sua existência. Os arquivos e os museus são as instituições que poderão efectuar este trabalho de divulgação e conservação dos testemunhos documentais específicos da história económica de uma comunidade.

*Decreto-Lei nº429/77, Diário da República - I Série Nº239, de 15 de Outubro de 1977 (Estabelece normas relativas à salvaguarda de arquivos e bens culturais pertencentes a empresas privadas)

Alvará de licenciamento industrial nº7-M, da Sociedade Industrial Aliança (proprietária da fábrica de moagem do Caramujo), datado provavelmente de 1920 (Ministério da Economia e do Emprego, Divisão de Recursos Arquivísticos e de Expediente, processo de licenciamento industrial 9197)
 Conceição Toscano

sexta-feira, 1 de junho de 2012

História local em Almada: a cidade e o rio

Assistimos, no avançar do século XX, para além das convulsões políticas originadoras de alterações a nível social, às transformações inerentes ao nascimento de uma cidade - a instalação do Arsenal do Alfeite arranca em 1919 com as primeiras obras de terraplanagem; a partir de 1935 as expectativas de maior empregabilidade da zona são reais e começa a movimentação de população, que não terminará nas décadas seguintes, igualmente potenciada pelas grandes obras públicas, como a construção do Cristo-Rei e da Ponte Salazar, e da vinda para Almada dos estaleiros de reparação e construção naval da Lisnave, na década de sessenta.

Tentando colmatar as necessidades de infraestruturação (mais graves a nível da habitação, transportes e abastecimento de água e electricidade) causadas pela chegada de tantos indivíduos, acelera-se a questão da expansão da área metropolitana para sul e a Câmara Municipal de Almada e o Ministério das Obras Públicas criam novos bairros económicos na periferia de Almada, inaugurando em 1942 o Bairro de Nossa Senhora da Piedade.

A estas décadas de dinâmica social e económica, sucederá a recessão total: o declínio da indústria, nomeadamente do importante sector corticeiro e também da moagem (esta já no final da década de oitenta), a crescente terciarização da economia. 
Almada possui um enorme potencial sócio económico devido à sua localização numa frente ribeirinha. A vários níveis - económico e social, principalmente - o rio Tejo impôs-se durante séculos como elemento estruturador.
Constituindo este território de Almada um dos pontos integradores de uma área maior (área metropolitana de Lisboa), na qual o que poderia parecer uma fronteira territorial sempre foi, não um obstáculo, mas uma ponte de interactividade entre cada um dos territórios componentes dos outros concelhos com margens estuarinas, nomeadamente Seixal, Barreiro, Moita, Montijo, a sul, desde cedo se constituíram seguras identificações, com valências diversas, numa dinâmica de influência da capital.

Na actualidade deste início de milénio, Almada (concelho incluído num dos anéis centrais da periferia dessa metrópole), à semelhança de outras autarquias, aposta forte no seu papel de "cidade da água" e na requalificação da sua frente ribeirinha, assumindo o seu passado histórico-cultural, num processo de constante evolução. O projecto Almada Nascente tenciona devolver à população almadense os espaços devolutos da Margueira e do Caramujo, em vida suspensa desde há décadas, devido aos processos de desindustrialização e inexoráveis evoluções tecnológicas e de competitividade a nível global, reinvestindo em novos usos do território, num tendencial renascimento urbano, cultural, social e económico.

Este reordenamento social e produtivo da cidade originará novos e sustentáveis eixos de desenvolvimento citadino, se efectivamente passar de um projecto traçado num papel para uma realidade material, auscultando-se a população e levando em conta os seus anseios e expectativas. 

EDITAL nº1098/2009, Diário da República Nº218, II Série, de 10 de Novembro de 2009 (Plano de Urbanização de Almada Nascente - Cidade da Água - PUAN)

 O Caramujo, na actualidade. Desapossado do cais e em abandono e degradação.

Conceição Toscano