quinta-feira, 5 de julho de 2012

Solar dos Zagallos - Complementaridade arquitectónica e artística

Em Portugal, o século XVIII é considerado um período de construções. De norte a sul do país, nobreza e burguesia constroem palácios, solares e quintas de recreio; à semelhança do espaço habitado, encontramos uma complementaridade nos jardins de cada uma dessas estruturas.
Nesta quinta, que marca o território da Sobreda com uma impressionante presença física, o seu conjunto edificado, misto de solar residencial e casa agrícola, apresenta características de arquitectura civil e religiosa. Ao longo de três séculos de uso, os seus ocupantes aqui deixaram as suas marcas pessoais, ao nível da evolução de actualizações da moda e dos usos referentes ao espaço habitado, casa e envolvente exterior, aí reflectindo modos de vivência, hábitos sociais e culturais.

O seu património azulejar, visto num percurso de três séculos de arte e técnica decorativa em Portugal, é rico e diversificado. Aqui encontramos os painéis figurativos em contexto profano, destacando-se os exemplares do "salão das mentiras" no piso nobre do solar e os do patamar da escadaria principal, além dos "bancos dos jogos tradicionais", no jardim; os revestimentos padronizados nos corredores da habitação; os painéis figurativos religiosos, nomeadamente na Capela de Santo António e no banco da entrada principal do jardim (Ver texto «Passeios patrimoniais na nossa terra - Sobreda»).

O Solar dos Zagallos apresenta no corpo principal uma escadaria de acesso exterior, central, com um patamar revestido frontalmente de belíssimos painéis, nos quais o artista, em pinceladas de azul, pintou cenas figurativas, emolduradas por motivos geometrizantes e de enquadramentos laterais de meninos-anjos suportando capitéis encimados de jarros com flores. O conjunto dos quatro painéis acentua o impacto visual da entrada do solar, em conjugação com a perspectiva elevada.
Patamar da escadaria principal exterior, painel à esquerda
Cena figurativa de um dos painéis de azulejos situados no patamar da escadaria principal, no centro à direita
Cena figurativa de um dos painéis de azulejos situados no patamar da escadaria principal, no centro à esquerda
Na habitação, a escolha do revestimento para as zonas de passagem recai sobre o azulejo de padrão. Devido à repetição de elementos seria menos dispendioso cobrir estas áreas com painéis não figurativos, sendo os historiados reservados para o salão e escadaria principal.
Corredor do piso superior do edifício principal, apresentando composição formal e requintada com medalhão central
No salão nobre, o "salão das mentiras", entramos num local de revestimento de todos os espaços disponíveis entre as molduras das portas e janelas de sacada e a lareira. Os painéis, pensados e calculados pelos artífices para cada intervalo parietal, apresentam cenas figurativas, enquadradas por belas cercaduras polícromas, de dourados e manganês principalmente, encimadas lateralmente por jarros de flores, enquanto frutos coroam centralmente todo o conjunto recortado e saliente na parede. Duas figuras de meninos-anjos, em pinceladas recatadas de azul, dispõem-se de cada lado da moldura, sendo rodeados pelos volteios dourados. Pinceladas de esbatimento em manganês encimam e formam base com as belas e envolventes asas de morcego.
"Salão das mentiras"
"Salão das mentiras"
As cenas figurativas, em azul sobre o branco cerâmico, são cenários campestres, sempre ligados a rios. Barcos ou veleiros e edifícios antigos, por vezes a vista alongando-se numa distância visual de azuis cada vez mais esfumados.

O seu corpo adossado, construído nos inícios do século XIX, é de estilo simples, pombalino, fazendo a ligação da casa principal à Capela de Santo António.
Entrada (piso térreo) do corpo adossado, com formalismo mais simples do que o do piso nobre
Ao invés de os diferentes estilos se oporem, estamos perante uma complementaridade, quer a nível arquitectónico, quer de decoração artística, de revestimento azulejar, de talha, de pintura e de estuque. Um entrosamento excepcionalmente alcançado numa evolução de três séculos, acompanhando as vivências sociais dos seus moradores, adequando-se parte edificada e decorada, numa simbiose e coordenação de funções e formalismos.

Mas o Solar dos Zagallos apresenta outra valência importante, para além do seu valor patrimonial: a de documento vivo de um passado, perpetuado através dos tempos. As fontes de conhecimento da nossa história são muito diversificadas e podem incluir os testemunhos gravados a pedra ou pintados na cerâmica.
O azulejo, como entidade patrimonial multifacetada, transmite-nos conhecimentos não somente estruturais da habitabilidade, decorrentes das suas características decorativas e funcionais, mas igualmente de suporte cénico de vivências sociais e históricas.
Seguindo modas e gostos consoante as épocas atravessadas, o azulejo ajuda-nos a estabelecer cronologias, não somente quanto à evolução da arquitectura e artes decorativas, mas também ao nível do estudo da história, através da análise dos testemunhos materiais de suporte à própria vivência quotidiana (exemplo também a perceber nos seus espaços exteriores).

Terminada esta visita aos espaços arquitectónicos de habitação, agendo para um próximo dia o passeio pelos jardins, igualmente reveladores de um lugar de memória, um espaço de criatividade, um local de encontro do contemporâneo com o antigo.

Conceição Toscano





2 comentários:

  1. Boa tarde, sou estudante de práticas culturais para municipios e tenho grande interesse em realizar um trabalho sobre o Solar dos Zagallos. Saberá onde posso obter a informação para o fazer?

    Muito obrigada

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  2. Olá,

    Eu falei com o próprio director; pedi uma entrevista apresentando as razões e os documentos como estudante do mestrado. Também há alguma bibliografia, nomeadamente editada pela Câmara Municipal de Almada; no Solar pode ser indicada e está disponível para consulta. Igualmente pode ser consultado o Centro de Arqueologia de Almada (http://www.caa.org.pt/).

    Um abraço e bom trabalho,

    Conceição Toscano

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