Na região do estuário do Tejo, nomeadamente na sua margem sul, devido a boas condições, de ordem vária, desde o factor natural, mas também de cariz geográfico e económico, potenciados pela proximidade da capital, desde cedo as populações foram instalando moinhos de maré. Os moinhos de vento igualmente marcaram a paisagem, embora a influência destes últimos tenha sido menor na vida económica do concelho.
O estuário do Tejo desde cedo constituiu um importante centro moageiro, onde estas estruturas robustas se destacavam em terrenos que pertenciam ao concelho e termo de Almada. Inclusive o mais conhecido dos moinhos de maré a nível nacional, o de Corroios, pertenceu ao concelho almadense até 1836.(1)
O estuário do Tejo desde cedo constituiu um importante centro moageiro, onde estas estruturas robustas se destacavam em terrenos que pertenciam ao concelho e termo de Almada. Inclusive o mais conhecido dos moinhos de maré a nível nacional, o de Corroios, pertenceu ao concelho almadense até 1836.(1)
Os moinhos de maré destacam-se nesta conjuntura da produção moageira da margem sul do Tejo, devido à quantidade de farinha moída e à facilidade de escoamento através de transporte fluvial. Ainda hoje se podem observar algumas destas estruturas nos concelhos que têm margens estuarinas - Seixal, Barreiro e Montijo.
Local testemunho da evolução da manufactura para a produção através do uso da máquina, todo o estuário do Tejo, não sendo terra de produção de cereais, reunia, no entanto, as condições geográficas para receber, do Ribatejo e do Alentejo, o trigo através do transporte fluvial.
Esta paleo-indústria de moagem iria progressivamente dar lugar às fábricas, com maquinaria importada, desaparecendo gradualmente as antigas estruturas. Os cereais e as farinhas suportavam mal os transportes, sendo conveniente instalar as unidades industriais o mais perto possível dos centros urbanos e das vias de acesso (estando Lisboa e a sua Outra Banda localizadas numa potencial zona estratégica para esta implantação), faltando ao promitente interessado no negócio gastar o mínimo possível com a força motriz.
Na sequência de uma já longa tradição local da moagem de cereais, Manuel José Gomes, um proprietário de vários moinhos e cujos antepassados directos também tinham estado ligados ao moinho de maré de Corroios, assume uma postura arrojada de iniciativa pessoal e estabelece novas técnicas de trabalho.
Em 1865, este industrial inaugura os edifícios da fábrica e a doca de desembarque de trigo e embarque da farinha no lugar do Caramujo. Pela sua mão, o espaço da Cova da Piedade revelava, já na segunda metade do século XIX, uma dinâmica de vigor na crescente industrialização.
O desenvolvimento técnico, potenciado pela máquina a vapor, alterava a conjuntura de factores determinantes para a fixação das fábricas. No caso específico do lugar do Caramujo as condições naturais já existiam (nomeadamente proximidade das vias de circulação e de grandes centros urbanos) e um conjunto de infra-estruturas necessárias a este novo mundo laboral iriam começar a surgir: o cais, armazéns, estruturas edificadas para albergar as mós e o maquinismo motriz.
Nesta foto exemplificativa da primeira fase de existência do complexo moageiro, conseguimos perceber o esquema construtivo que transformou, ao longo de três décadas, a unidade fabril inicial num complexo: de sul para norte (da esquerda para a direita) vemos os edifícios geminados, correspondendo à fábrica construída em 1865; separado destes por um vão, alargamento posterior de 1872; por último, o edifício principal construído por volta de 1888-89, inaugurado em 1889. Esta Moagem (nome atribuído às fábricas de farinha), em 1881 estava equipada com 18 pares de mós, sendo considerada a maior fábrica nacional deste sector de actividade industrial.
A partir do momento em que as fábricas substituem as mós de pedra por sistemas novos de moagem, os cilindros de metal, esta indústria abandona o carácter artesanal e entra numa nova era. Os cilindros metálicos constituem a base do denominado «sistema austro-húngaro». São cilindros de fundição endurecida, trabalhados, e que podem ser estriados ou lisos, de dureza variável, conforme o fim a que se destinam. A capacidade da moagem é muito maior e são aproveitados os subprodutos da farinha espoada. Esta inovação foi o ponto de início da verdadeira moagem moderna. Começava o início do fim da vida útil
dos moinhos.
A instalação e crescimento exponencial da indústria moageira na Cova
da Piedade - Caramujo, foram dois dos factores impulsionadores do
desenvolvimento económico da zona. Como prova da importância desta
fábrica já em 1889 podemos apontar a inclusão da tecnologia inovadora atrás referida, o
sistema austro-húngaro, na moagem dos cereais. Neste ano, era
inaugurado o edifício novo; para além da modernização da fábrica em
termos de edificado também há notícias em relação à maquinaria. (2)
O desenvolvimento industrial introduzido por Manuel José Gomes continuava a marcar pela referência positiva, agora pelas mãos da sua viúva e filhos, nomeadamente António José Gomes. Como parte fundamental das actividades laborais desenvolvidas em Almada, o lugar do Caramujo apresentava um dinamismo admirável dentro de um quadro económico regional e nacional, nomeadamente tendo em conta a situação apresentada referente à fábrica de moagem da Viúva de Manoel José Gomes & Filhos - para além de empregar 330 operários de todos os ofícios necessários ao fluxo da produção da farinha, laborava durante todos os meses do ano (nem todas as unidades fabris o faziam), tinha um capital considerável, já utilizava a energia eléctrica para iluminação, para além de ter alterado o seu sistema de moagem das mós tradicionais para o inovador sistema tecnológico.
Foi com espanto que colhi as seguintes informações no texto «A formação da classe operária portuguesa e o caso de estudo almadense (1890-1930)», da autoria de Joana Dias Pereira: "A tecnologia era rudimentar. [...] e as mós da Fábrica do Caramujo...»(3)
Todos os elementos que acabei aqui de expor traduzem claramente uma situação completamente contrária à opinião desta investigadora. Os estudos de história local devem trazer o conhecimento dos acontecimentos históricos, sociais e económicos às populações. Quaisquer análises devem ser sempre suportadas por fontes históricas e não devem ser emitidos discursos destituídos de avaliação aprofundada desses documentos e das obras já realizadas acerca da temática, nunca esquecendo que, numa investigação desta natureza, há que conhecer igualmente quer a história económica, quer a história social, nunca perdendo de vista a evolução das técnicas. Sem a prática deste trabalho multidisciplinar, não haverá nunca a percepção abrangente de uma evolução industrial, temática complexa e nunca tão linear que se pegue num só item e se descartem os outros.
Daí a riqueza de estudo que se apresenta ao investigador do património industrial. Daí a riqueza história da Cova da Piedade. Estudar esta temática de uma forma relativa é empobrecedor da nossa história local e redunda em erros de avaliação.
(1) Após a vitória do liberalismo, as reformas administrativas do século XIX, nomeadamente em 1836 (com a publicação do primeiro Código Administrativo, implementando medidas descentralizadoras), trariam alterações administrativas ao território de Almada, que se veria apartado de metade da sua área que passou para o novo concelho do Seixal.
(2) "...em 1890, quando Calvet de Magalhães inquiriu as fábricas de moagem, já empregavam cilindros as fábricas do Caramujo,...", apontado por Jaime Alberto do Couto Ferreira, na sua obra Farinhas, moinhos e moagens, p.211
(3) Publicado nos «Anais de Almada» Revista Cultural, Nºs 13-14; p.145
(2) "...em 1890, quando Calvet de Magalhães inquiriu as fábricas de moagem, já empregavam cilindros as fábricas do Caramujo,...", apontado por Jaime Alberto do Couto Ferreira, na sua obra Farinhas, moinhos e moagens, p.211
(3) Publicado nos «Anais de Almada» Revista Cultural, Nºs 13-14; p.145
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